[Resenha] A sensibilidade de Conceição Evaristo em “Olhos d’água”
Obra evidencia violência urbana e desigualdade social, principalmente em relação às mulheres negras
Desigualdade social é um tema comum na literatura brasileira, mas na maioria das vezes o assunto é retratado sob a ótica de homens, principalmente brancos. Em busca de maior representatividade no mercado literário, mulheres têm conquistado mais espaço nas livrarias e ganhado mais voz nas histórias. Uma das autoras que quebram esse padrão na literatura é Conceição Evaristo, que recentemente anunciou que vai se candidatar à Academia Brasileira de Letras (ABL). Em Olhos d’água, lançado em 2014, a escritora reúne 15 contos que evidenciam a violência urbana que atinge negras. Nas histórias, a autora expõe o cotidiano de mulheres que sofrem com a miséria e a exclusão social.
Com apenas 116 páginas, a obra é arrebatadora e comovente. O conto que dá o título ao livro relata o sofrimento de uma mãe negra e pobre, que fazia sacrifícios para cuidar dos filhos. Narrado por uma das sete filhas dessa mulher, o texto cria uma empatia entre o leitor e as personagens. A menina relembra histórias da infância da própria mãe, mas admite que as lembranças se confundem com suas próprias vivências. A grande questão de sua filha era: “qual a cor dos olhos de minha mãe?”. Conceição Evaristo reforça que a desigualdade social é um problema latente no país e que acaba sendo herdado pelas gerações futuras.
Eu me lembrava também de algumas histórias da infância de minha mãe. Ela havia nascido em um lugar perdido no interior de Minas. (…) Às vezes as histórias da infância de minha mãe se confundiam com as de minha própria infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando minha mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento.”
Já o texto “Maria” conta a história de uma empregada doméstica que entra em um ônibus na volta do trabalho, se depara com assaltantes e se assusta ao ver que um deles é o ex-marido, pai de seu filho mais velho. A narrativa mescla pensamentos, sentimentos e diálogos entre a personagem e o homem. No meio da ação dos bandidos, eles conversam sobre o filho, a vida que dividiam no passado e ela demonstra que sente saudade do amor daquele ex-companheiro.
Maria é a única que não é roubada pelo grupo e, por isso, quando os bandidos fogem, os passageiros desconfiam dela. Eles a agridem e a acusam de criminosa, mesmo sem provas de que a mulher teria algum tipo de relação com o ato criminoso. A história da empregada doméstica nada mais é do que um paralelo com a nossa sociedade atual, que marginaliza e pré-julga as pessoas que não se encaixam nos padrões financeiros, estéticos e culturais.
Quanto tempo, que saudades! Como era difícil continuar a vida sem ele. Maria sentou-se na frente. O homem sentou-se a seu lado. Ela se lembrou do passado. Do homem deitado com ela. Da vida dos dois no barraco. Dos primeiros enjoos. (…) Por que não podia ser de outra forma? Por que não podiam ser felizes?”
Outro texto que se destaca na coletânea é o “Lumbiá”, o qual conta a história de uma criança pobre que se encanta com a imagem do Menino Jesus em uma loja. O menino se identifica com a aparência de Jesus. Por não ter condições de comprar o objeto, ele rouba do estabelecimento. Mas depois tem um fim trágico. Assim como nos outros contos, Conceição evidencia a pobreza e a desigualdade social presente no país.
Sobre a autora
Conceição Evaristo reflete suas experiências nas obras, como em Olhos d’água. A escritora nasceu em uma favela de Belo Horizonte, em Minas Gerais, e foi criada em um ambiente pobre com sua mãe e nove irmãos. Por um tempo, ela precisou conciliar os estudos enquanto trabalhava como empregada doméstica. Aos 25 anos, Conceição se mudou para o Rio de Janeiro e estudou Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A autora estreou na literatura em 1990, com textos publicados na série Cadernos Negros. Mestra em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Conceição Evaristo é militante do movimento negro e participa de atividades da militância política-social.
Suas obras abordam temas sobre discriminação racial, de gênero e classe. Os livros da escritora são fundamentais para dar mais visibilidade às mulheres negras, que sofrem violência e preconceitos diariamente na sociedade.
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