[Resenha] A humanização do incêndio da Boate Kiss em “Todo dia a mesma noite”
Com sensibilidade, jornalista Daniela Arbex relembra a tragédia que deixou 242 mortos e mais de 600 feridos na cidade de Santa Maria
As cenas do tumulto, da correria e dos resgates das vítimas no incêndio da Boate Kiss, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, entristeceram os brasileiros no dia 27 de janeiro de 2013. Durante o show da banda Gurizada Fandangueira, um sinalizador de uso externo utilizado pelo vocalista soltou faíscas que atingiram o teto da boate. A espuma de isolamento acústico não tinha proteção contra fogo e foi incendiada.
Na ocasião, 242 pessoas morreram e mais de 600 ficaram feridas por causa de imprudência e más condições de segurança na casa. Após cinco anos, as imagens continuam nas lembranças dos moradores da região, principalmente nas das famílias atingidas pela segunda maior tragédia do Brasil. O caso perde apenas para o incêndio do Gran Circus Norte-Americano, em Niterói, no Rio de Janeiro, quando 503 pessoas foram mortas.
Mais detalhes e profundidade
Desde o ocorrido, o assunto foi bastante explorado pelos meios de comunicação, com vídeos, textos e entrevistas. No entanto, ainda havia a necessidade de dar mais profundidade à história. E o livro Todo dia a mesma noite: a história não contada da Boate Kiss, da jornalista Daniela Arbex, preenche justamente esta lacuna. Com sensibilidade, a autora descreve conversas com famílias, testemunhas, vítimas e profissionais envolvidos, como bombeiros e médicos, e não deixa o caso cair no esquecimento.
Cada pertence resgatado reconstituía a individualidade das vítimas, que assim recuperavam seu nome e conquistavam o direito de serem enterradas dignamente.”
A obra tem menos de 300 páginas e é arrebatadora. Mas tome cuidado: é preciso de fôlego para avançar na história. Com apuração detalhada, o livro reúne relatos cruéis, tristes e agoniantes. Ao mesmo tempo que te paralisa com o choque dos depoimentos torturantes, a narrativa do Todo dia a mesma noite te prende até o fim. Em nenhum momento, Daniela expõe as vítimas de forma sensacionalista. Pelo contrário, as dores são respeitadas. A jornalista humaniza os depoimentos e cria uma empatia do leitor com os entrevistados.
No incêndio, os frequentadores da boate foram envenenados pelo mesmo gás usado nas câmaras de gás em Auschwitz, na Polônia, na Segunda Guerra Munidial. Segundo a jornalista, a associação do cianeto com o monóxido de carbono potencializa o efeito do envenenamento, o que provocou a alteração do estado mental das vítimas.
Aliás, só elas conseguem dimensionar a devastação causada pelo esquecimento do som da risada de um filho. A consultora ótica Lívia Oliveira já não consegue lembrar o barulho do riso de Heitor. E isso a consome.”
Relatos angustiantes
As histórias são narradas em terceira pessoa e alguns dos relatos são descritos sob a ótica da capitã de sobreaviso no Hospital da Brigada Militar de Santa Maria, Liliane Espinosa de Mello Norberto Duarte, de 48 anos. Em um deles, ela conta o momento em que entrou na boate após o incêndio. “A capitã da brigada caminhou pela Kiss atordoada não só com o que viu, mas com o barulho dos celulares das vítimas. (…) Na maioria dos casos, porém, o visor indicava a mesma legenda ‘mãe’, ‘mamãe’, ‘vó’, ‘casa’.”
Em outro depoimento, Liliane relembra quando estava no ginásio da cidade, para onde os corpos dos mortos eram levados. Ela cita o caso de uma mãe que custava a acreditar que a filha estava morta. A mulher só aceitou o fato quando viu a tatuagem na perna da menina.
Eu sabia que era ela, mas tinha tanta esperança que não fosse… – respondeu a mulher, chorando.”
Todo dia a mesma noite escancara a negligência dos empresários e políticos em relação a punição mais severa dos envolvidos no caso, além de revelar os trâmites do processo judicial. É uma obra fundamental para que situações como a da Boate Kiss sejam lembradas diariamente e não se repitam no país.
Sobre a autora
A jornalista Daniela Arbex nasceu no dia 19 de abril de 1973, em Juiz de Fora, Minas Gerais, e se formou em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em 1995. A sensibilidade da escrita da jornalista já era conhecida desde o best-seller Holocausto Brasileiro.
Eleito Melhor Livro-Reportagem do Ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte, em 2013, o livro retrata os maus-tratos no Hospital Colônia de Barbacena por meio de depoimento de ex-funcionários e pessoas ligadas à unidade. Quase 60 mil pessoas morreram na época. Além de conquistar o título de segundo melhor Livro-Reportagem no Prêmio Jabuti, em 2014, a obra foi adaptada para um documentário exibido em mais de 40 países.
Outro sucesso da jornalista é o Cova 312, vencedor do Prêmio Jabuti, em 2016, na categoria Livro-Reportagem. No livro, Daniela aborda a ditadura de uma forma que a história oficial nunca fez. Ela tem mais de 20 prêmios nacionais e internacionais no currículo, como três prêmios Esso e o norte-americano Knight International Journalism Award, em 2010. Há 20 anos trabalha no Jornal Tribuna de Minas, onde é repórter especial.
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