[Resenha] “A Elite do Atraso” é uma análise crua sobre as raízes da desigualdade brasileira
Jessé Souza rompe com autores consagrados para explicar nossas relações sociais e o mais importante: como transcendê-las
Desconstruir é o propósito principal de Jessé Souza em A elite do atraso – da escravidão à Bolsonaro. De maneira clara, ousada e bastante contundente, o autor busca desfazer mitos construídos em torno da sociedade brasileira como o do homem cordial, a corrupção como o grande problema nacional e o viralatismo.
Ao longo da narrativa, somos confrontados a dois grandes nomes da literatura brasileira Sérgio Buarque de Hollanda, por Raízes do Brasil (1936) e Gilberto Freyre por Casa-Grande e Senzala (1933) – alguns dos livros mais importantes e influentes no século XX, responsáveis pelo pensamento social brasileiro e por reforçar esses mitos. Jessé Souza é enfático e sem meias palavras ao afirmar que as raízes da desigualdade brasileira não estão na herança de um Estado corrupto, mas na escravidão.
A obra, lançada originalmente em 2017, foi amplamente lida mantendo-se por mais de um ano na lista de Mais Vendidos de Não Ficção da Publishnews e atingindo a marca de 70 mil exemplares adquiridos, segundo a editora. Neste ano, o livro ganhou uma atualização para adicionar a Era Bolsonaro ao subtítulo, mas também novo design gráfico – menos óbvio – levando as cores da bandeira nacional que aponta para a esquerda pelo selo da editora Sextante.
Ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) entre 2015 e 2016, Jessé Souza é doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), professor da UFABC e, aos 59 anos, autor de 27 livros entre eles “A Ralé Brasileira”, “A Radiografia do Golpe” e “A Classe Média no Espelho”. Debruçado sobre nosso passado escravocrata, o autor apresenta um link entre a técnica de colonização portuguesa, a escravidão semi-industrial das plantations do continente americano e a escravidão familiar e sexual moura e muçulmana.
Embora muitos não saibam, a escravidão sexual, cujo epicentro eram os países muçulmanos do Norte da África, escravizou 7,5 milhões de mulheres do século VII ao século XIX. Isso sem contar cerca de 1 milhão de eunucos para guardar os harens. Se pensarmos que a escravidão americana é estimada em 10 milhões de almas, as grandezas são comparáveis”.
Os portugueses imitaram os árabes, os mouros, os maometanos em costumes e valores culturais. A concepção maometana da escravidão, como sistema doméstico ligado à organização da família, inclusive às atividades domésticas, sem ser decisivamente dominada por um propósito econômico-industrial, foi um dos valores que os portugueses aplicaram à colonização predominantemente, mas não exclusivamente cristã, do Brasil.
Entre as práticas utilizadas, destaca-se a poligamia para o patriarca e a violência explícita. Na visão de Souza, essa é a semente das relações de classe no Brasil. Os filhos fora da casa-grande eram aceitos e educados segundo as tradições cristãs, com intuito de aumentar a população de um país de grandes proporções. O que explica a ascensão de mestiços na época.
Nosso desenvolvimento histórico foi diferente do europeu, portanto, não pela ação de “estoques culturais imutáveis”, ou por supostas “heranças malditas”, mas porque nossa sociedade foi forjada segundo relações sociais de outro tipo”.
A invisibilidade da população negra na luta de classes
Mesmo após a abolição formal da escravidão, em 1880, a vida não melhora para essa população que é jogada ao próprio azar, formando o que o autor classifica como ralé de novos escravos, destinados a uma dura realidade que pouco mudou desde então. Já que libertá-los sem ajuda foi equivalente a uma condenação eterna.
Tudo isso, ainda acelerado pelas mudanças na dinâmica econômica. O sudeste tornou-se o novo polo de desenvolvimento e chegaram milhares de imigrantes estrangeiros, principalmente no Estado de São Paulo, para trabalhar.
Em cidades como Salvador, Recife e Rio de Janeiro alguns negros, mas especialmente os mulatos, ainda tinham acesso a funções do artesanato urbano, de atividades mecânicas e do pequeno comércio urbano, mas em São Paulo a situação era muito diferente. Lá, a concorrência dos imigrantes, especialmente dos italianos, que não temiam a degradação moral do trabalho produtivo manual, foi devastadora para os libertos.
Tudo aquilo que o culturalismo racista busca esclarecer como decorrência de uma herança maldita luso-brasileira para a corrupção, decorre, na verdade, do abandono dessa classe. Como a tornamos invisível, o trabalho dos intelectuais conservadores fica facilitado”.
O autor rejeita a redução das classes sociais a mera dimensão econômico como teimam em fazer tanto liberais, quanto marxistas. Apontando os fenômenos socioculturais que vão desde o berço em ambientes familiares privilegiados à preparação ao ambiente competitivo como determinantes do futuro de sucesso ou fracasso social.
Souza convida a sociedade a uma reflexão e a tomar responsabilidade pelas classes esquecidas e abandonadas, para ele, essa é a única maneira de atingir patamares europeus de igualdade. O autor cita sua experiência na Alemanha em 1980, que com uma pequena bolsa de doutorado tinha acesso aos melhores médicos do país sem distinção de classe social, o que orgulhava muito os alemães. “Aprendi que o capitalismo regulado – não o socialismo estatizado – era a forma mais perfeita de organização social”.
A corrupção é política ou do mercado?
Um ponto de destaque no livro e muitas vezes menosprezado por críticos e especialistas são as práticas legais e ilegais que fazem os ricos pagarem menos impostos e ainda serem credores da sociedade por meio da dívida pública. Em especial, a desregulamentação do mercado.
Segundo Souza, o Estado pede emprestado a bancos e fundos de investimento o que não é pago em impostos, sendo que, no Brasil, estima-se uma evasão fiscal de cerca de 520 bilhões de dólares. Número 500 vezes maior do que o valor recuperado pela operação Lava Jato na Petrobras.
A taxa de juros reais no país é a maior do mundo para remunerar o 1% mais rico que deixa de pagar seus tributos. A crise brasileira, portanto, seria uma crise de receita e não de despesa como anuncia a mídia e os políticos defensores da austeridade.
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Por fim, o livro questiona a estratégia de parte da esquerda em focar seu discurso na retórica: democracia versus fascismo, sem enxergar que boa parte da população já vive em fascismo prático de violência e exclusão, ao não adentrar nas causas reais da pobreza.
Apresentando como exemplo o Rio de Janeiro, o autor cita que a população empobreceu não pelos 280 milhões de Sérgio Cabral desviados e descobertos pela Operação Lava Jato – atos condenáveis por si só – mas pela campanha de criminalização da Petrobras, cujos Royalties o estado inteiro dependia para obras de infraestrutura, geração de empregos e pagamento de servidores públicos.
Além do Rio de Janeiro, o país como um todo dependia da capacidade de investimentos da Petrobras, que chegou a representar 50% do investimento público nacional. Essa perda é na escala de centenas de bilhões de reais, montante suficiente para empobrecer e desempregar populações inteiras. Afinal conseguiremos que executivos, e não empresas e a população, sejam punidos por corrupção?!
Natalia Figueiredo (@natnomundo) é jornalista, acrobata e co-fundadora da Outlab. Um Laboratório de Soluções Digitais em Design, Web e Conteúdo.