Criação sem limites: a literatura remixada
Que o remix é uma ferramenta musical, todo mundo já sabe. Samba no hip-hop, hip-hop no rock, rock no reggae e por aí vai. A mistura de estilos em busca da batida perfeita! Talvez tenha sido pensando nisso, ou melhor, na narrativa perfeita, que o mashup invadiu também a literatura. Jogando-se trechos das obras de diversos autores em um mesmo “liquidificador” literário têm-se como resultado um texto novo, remixado, divertido e pra lá de interessante. Por isso, aproveitamos a semana da música, que começa nesta quarta-feira (16/11), para falar de remix também na literatura. Ao digitar “literatura remixada” no Google é bem provável que você irá encontrar entre os primeiros resultados, o blog do psicólogo e também escritor Leonardo Villa-Forte. Em 2010, ele criou o MixLit, referência quando o assunto é a criação de textos a partir da seleção, edição e recombinação de trechos de obras de diversos escritores. Segundo Leonardo, o MixLit tem como principal objetivo ressaltar o papel ativo do leitor na criação de sentido de um texto. Significa dizer que você também pode ser autor de um texto quando, ao reunir referências textuais de diversos autores, cria significados/textos para um determinado tema. Seguindo a mesma proposta na liberdade das criações narrativas, o ex-professor de direito econômico e tributário e escritor Paulo Scott criou, em 2008, a Orquestra Literária. O espetáculo consistiu na apresentação de uma combinação de poemas e textos de prosa de diversos autores brasileiros contemporâneos, inclusive do próprio Paulo Scott, com trechos extraídos de outros escritores. Durante o espetáculo houve música e projeções com imagens – tudo com o intuito de criar uma nova forma de narrativa e oralidade. E a literatura remixada não é tendência só no Brasil. Em 2010, o escritor norte-americano David Shields lançou o livro Reality Hunger: a Manifesto, onde critica a artificialidade da narrativa de ficção, tida como “sem verdade” e faz uma defesa do ensaio e da livre apropriação de idéias. Na própria obra, o autor faz uso da literatura remixada, utilizando trechos de livros escritos por terceiros. O site Reality Hunger revela alguns desses trechos e indica suas autorias. Engana-se também quem acha que a literatura remixada é resultado de iniciativas individuais de alguns poucos blogueiros e escritores. Recentemente, a editora Lua de Papel investiu na tendência fazendo grande sucesso com os clássicos da literatura brasileira remixados com elementos fantásticos como vampiros, ETs e lobisomens. O resultado foram obras como Dom Casmurro e os Discos Voadores, de Lucio Manfredi e O Alienista Caçador de Mutantes, de Natália Klein. A Tarja Editorial também lançou sua versão remixada de Memórias Póstumas de Brás Cubas: a obra Memórias Desmortas de Brás Cubas. Leia também: Mashups Literários – os DJ´s dos Livros A maior contribuição da literatura remixada parece ser, então, a possibilidade de criação sem limites! Gostou? Então conheça um pouco do trabalho de um DJ Literário. O trecho abaixo foi retirado do primeiro post publicado no MixLit.
Irrompe! Havia, primeiro, a memória da infância, com as árvores tão sérias e caladas como pessoas enfeitiçadas. (1) Desculpe, me excedi um pouco, nem parece que tantos anos se passaram, quando me vejo tão exaltado até me esqueço de que aprendi, com a minha, digamos, experiência, não esta que acabo de relatar, tão reles, tão mínima se comparada à outra, que ainda não contei mas vou contar, tenha paciência, vou contar, até me esqueço que aprendi o segredo do mistério, gostaria de saber? (2) Eles têm muitos pensamentos, eu tenho só um pensamento, meu único pensamento vai acabar sendo mais forte que os muitos deles. (3) Há certos tipos de pessoas que têm algo que as distingue dos outros seres humanos. Pessoas assim possuem um instinto geralmente encontrado apenas nas crianças pequenas: o instinto de estabelecer imediatamente um contato vital entre elas e todas as coisas do mundo. (4) Estão acostumadas, é o modo de ser que escolheram, estabilizando-se assim, e mexer nisto fará com que se voltem contra nós, a despeito das nossas melhores intenções. (5) Da terça-feira e da quarta, guardo flashes desconexos. A imagem mais nítida está relacionada ao liquidificador. Acho que fiz uma batida com suco de maracujá, leite condensado, vodca ou tequila e uma mão cheia de comprimidos de diversas cores e calibres. (6) _ _ _ _ Nesse momento sua memória começou a esgarçar, até mesmo a ficar desorientada, como seus passos; em algum lugar, voltou a se deparar com uma praça: perambulou por aléias poeirentas, entre gangorras quebradas, castelos de areia inacabados, passou por bancos largos e pesados, esquecidos de tempos imemoriais. (7) Com a mão no peito e o ouvido atento escutava aquela entediante música sabendo que era ela, afinal, que o permitia durar. A repetição salvava o organismo por dentro, mas por fora era indispensável uma expectativa em relação a surpresas, invasões, derrocadas, saltos súbitos e outros percalços. (8) Quando assim me acontece de abismar-me, é porque já não há lugar para mim em parte alguma, nem mesmo na morte. (9)____________________ Referências: [1] Robert MUSIL. O jovem Torless. 1906. Tradução de Lya Luft. Coleção Grandes Romances. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 1978, p.85. [2] Flávio CARNEIRO. A confissão. 2006. Editora Rocco. Rio de Janeiro, 2006, p.34. [3] J.M. COETZEE. Vida e época de Michael K. 1983. Tradução de José Rubens Siqueira. Companhia das Letras. São Paulo, 2ª edição, p.65. [4] Carson MCCULLERS. A balada do café triste. 1951. Tradução de Caio Fernando Abreu. Círculo do Livro. São Paulo, 1987, p.31. [5] Nuno RAMOS. Ó. 2008. Editora Iluminuras. São Paulo, 2009, p.207. [6] Max MALLMAN. Síndrome de Quimera. 2000. Editora Rocco. Rio de Janeiro, 2000, p.58. [7] Imre KÉRTESZ. O fiasco. 1988. Tradução de Ildikó Suto. Editora Planeta. São Paulo, 2004, p.137. [8] Gonçalo M. TAVARES. O senhor Calvino. 2004. Casa da Palavra. Rio de Janeiro, 2007, p.58. [9] Roland BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso. 1977. Tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. Martins Fontes Editora. São Paulo, 2ª edição, 2007, p.4.]]>
Não vejo isso como algo novo, é um cut-up. Claro que com outros recursos, mas não me parece ser um “avanço” na literatura, de forma alguma.
Abraço
Já conhecia alguns desses textos editados noutros países que não o Brasil, só desconhecia que se chamavam literatura remixada!