A Estante Convida: Simone Campos
O Aleph de Botafogo para a Pirata Botafogo tem um aleph. Não é segredo para ninguém: está na lista telefônica. No índice do plano de saúde. Até um site ele tem: www.oaleph.com.br. É claro que está disfarçado como laboratório, mas SÓ EU SEI A VERDADE. Faz algum tempo, eu tive que sair do meu oftalmologista. Apresentei-lhe um problema simples, bolinhas nas pálpebras, e ele gaguejou como um mau aluno em chamada oral. Desisti dele. Acessei o site do plano de saúde e digitei OFTALMOLOGIA. – O Aleph, boa tarde? Sorri com a boca meio aberta. Era bom demais pra ser verdade. – Boa tarde. Vocês têm consulta oftalmológica? – Não. Aqui só temos exames clínicos. Eu não pude fazer minha consulta n’O Aleph. Mesmo assim era bom demais para ser verdade. Um aleph no meu bairro! Quem mora em Botafogo está mesmo perto de tudo. Peguei a sacola de ginástica e saí. O endereço do Aleph era rua Dezenove de Fevereiro. A minha rua. Minha rua de infância, onde eu tinha alugado Fantasia, jogado Sonic, lido Monteiro Lobato, andado de bicicleta e desenhado com giz de cera em formulário contínuo. Onde tanto me fascinara o fato de eu soprar velinhas um dia depois da rua. E os lugares onde tudo isso tinha acontecido cercavam os três trechos da transversal. A academia de ginástica também ficava em frente a um lugar onde já morei. Contei os números até identificar O Aleph. Ficava colado a uma clínica dentária cuja fachada era uma cachoeira artificial coberta por insulfilme cerúleo – onde antes habitara a escola onde aprendi a tocar teclado. O mais intrigante era que, apesar de o site informar que O Aleph era mais velho do que eu, nunca havia reparado nele. Precisamente em frente ao Aleph, estava sendo edificado um zigurate que viria a transbordar ainda mais os esgotos da Dezenove em dias de chuva. Mesmo assim, eu não estava preocupada com uma possível demolição do Aleph. Via-se bem que o destino das casinhas transversais de Botafogo não era necessariamente funesto: a maioria virava jardim de infância, laboratório, restaurante. Algumas, coitadas, abrigavam seitas das mais estranhas. Mas todas com algum abatimento de IPTU. O Aleph era um edifício pequeno, cinzento, com um símbolo sinuoso tatuado na fachada que demorei a reconhecer como um “a” serifado parcial dentro de um círculo. Fiquei toda arrepiada. Dei de ombros e retomei meu caminho. Chegando lá, encontrei Ana Paula se esfalfando na esteira: – Olha só quem está na TV. – apontou ela. Era Eunuco, o jovem arroz-de-festa literário. Ana Paula sabia que ele era minha implicância favorita. Eunuco fazia muito esforço para parecer que não dava a mínima para nada; eu tinha para mim que ser cool e fazer muito esforço eram coisas diametralmente opostas. – Trouxe o livro que eu falei. O Valis. – Valium? – riu ela. – Não, Valis. Do Philip K. Dick. Vivo emprestando livros a Ana Paula, até porque ela tem o hábito de devolvê-los. Na última vez que tínhamos nos reunido, para ver um filme de vampiros sueco, ela averiguou a minha estante e perguntou o que eu lhe recomendaria agora. E eu estava lhe entregando Valis. Ela me olhava não muito convencida. Mas eu sabia exatamente como convencê-la: – Esse livro aparece em Lost, Ana Paula. No episódio 4 da 4ª temporada. – Aparece em Lost?? – Interessou, né? – eu ri, subindo na esteira e começando a caminhar – Essas séries todas fazem muita referência a Valis. Lost, Battlestar Galactica… OK, essa você não acompanha. Mas leia sim, Ana Paula. Eu acabei de ler e adorei. Eunuco continuava na tela. Lembrei de Alice através do espelho: eu corria, corria e não conseguia escapar dele. Ouvi-o declarar que não se importava com o leitor, nem com a literatura. Qualquer um pode escrever, dizia; a literatura é uma casa, aberta a todos. Nem se podia tachá-lo de demagogo: seus livros traziam sim essa ideia de morte – ou assassínio – da literatura. Pela agressividade com que maltratava o próprio pão, nem parecia que, se a literatura morresse, suas contas no Lamas e no Bar Luís seriam canceladas; que ele teria algo a vender além da imagem de alguém que não liga para o que vende. Na mão de Eunuco, em suma, literatura era mulher de malandro. Preciso arrumar um golpe desses para mim, pensei. Ana Paula diz que eu não sou boa de divulgação. Que preciso aparecer mais. É verdade. Eu quase não apareço na imprensa. Eu quase não apareço, ponto. Compareço pouco aos lugares. Sou tão ensimesmada que chego a fazer turismo de mim mesma. Quer dizer, para um observador, eu seria uma stalker de prédios, com essa história de passar sempre em frente de alguns deles, ver a quantas andam. O colégio, a praça, a biblioteca, a banca, a casa. O motivo desse hobby é menos narcisismo do que vergonha da minha condição de obsessiva e paranoica. Ah, essas minhas mãos de bazuca… é importante ser inofensiva. Não posso jamais voltá-las para gente real. Melhor apontar para a própria cabeça, para prédios inanimados, para coisas inventadas – que ninguém tem culpa de eu ser maluca. Só Philip K. Dick me entende. E ele está morto. Neste plano.
* * *
Quando saí da academia, já tinha encasquetado que devia reler O Aleph de Borges. Como eu não o tinha em casa, comecei por baixar um PDF em espanhol, língua irremediavelmente feia que Borges retocou à legibilidade. Mas o conto estava infestado de símbolos espúrios como %20. Completamente ilegível. Então, pensei, devo fazer à antiga. Me encaminhei à biblioteca mais completa de Botafogo – a da escola em que estudei. Aos ex-alunos eles deixam entrar, após alguma burocracia. Não podia levar o livro para casa, porém o consultei lá mesmo e fiz minhas anotações. Achei curioso, por exemplo, que ele visse pelo aleph “um câncer no peito”, “a circulação do meu escuro sangue”, entre outras entranhas. Por isso que devem ter nomeado assim o laboratório. Espertos. Eu nem me lembrava disso. Aquilo me apaziguou, mas conforme passaram os dias eu voltei a pensar n’O Aleph como ponto turístico. Um aleph tão pertinho de mim era uma tentação por demais grande. O que Borges faria no meu lugar? Meditei no conto. Nele, Borges agia sem a menor cerimônia – para ser precisa, sem a menor noção. Convidava-se para ir a casa de Daneri, depois deitava no porão do inimigo para ver o aleph em que mal acreditava. Pareceu-me entender o recado. A falta de noção que tanto me atrapalhava no dia-a-dia me podia ser útil ali para uma legítima joão-sem-bracice. Simplesmente entrei pela porta aberta d’O Aleph. – Você que é Simone? Congelei, espantada. O quê? – Sim. – respondo, acuada. – Ah, sim. Venha por aqui. Simone é um nome bem comum. Devem ter me confundido com alguém. Ou o aleph contou a eles que eu viria. A recepcionista subiu uma escada e me abriu uma sala com microscópios, centrifugadoras e outras aparelhagens sofisticadas. – Pode pôr o seu jaleco. Fiquei muda um segundo. Estava entendendo. Minha cara de 19 anos, minha mochila e meu nome extremamente comum tinham induzido a recepcionista a pensar que eu era a estagiária nova. Menti com a minha carinha mais nula. – Me disseram que vocês forneceriam um. – Não. A gente deixou claro que ele só seria disponibilizado depois do primeiro mês. Nisso, um senhor barbado entrou na sala. – Você que é a moça nova? Prazer, Jorge. Jorge! – Oi, prazer. Simone. – respondo. – Muito prazer, Simone. Bom… vamos começar o tour? – Eu queria só ir ao banheiro um minutinho. – Descendo a escada, segunda porta à direita. – indicou o serelepe senhor, voltando-se para os instrumentos. Se o aleph estivesse em algum lugar, haveria de ser no porão.* * *
Agora, no canto inferior esquerdo da tela do meu computador, bem na base da barra de status do Word, há um pixelzinho congelado. É o disfarce perfeito. Já fiz sessões de cinema nesta tela e nenhum dos presentes sequer suspeitou. Tenho que empretecer a tela e desligar todas as luzes do apartamento para ele aparecer. Quando faço isso os gatos se acercam, com reverência. Não é muito agradável. Alguma coisa fizeram a este aleph. Ele está mutilado. Incompleto. Não é de se admirar que quisesse uma nova dona. Eu vi os cansados bulbos dos cabelos acaju de uma velhinha (caiu um), as espirais dentro de seus ouvidos, o mosto entornando nos recipientes de uma vaca, duas galinhas dissolvendo dentro de certa jiboia, impulsos elétricos brincando de carniça nas mielinas, o óvulo gorado de uma anoréxica paranaense, uma navalha mergulhando num baço, um AVC, uma mórula muito desejada, uma bolsa de veneno, o fluido amarelado dentro da barriga da minha gata, Jonas dentro da baleia, a água invadindo as vias nasais de um jovem elefante, um organismo fritando no Texas, um ataque de pânico em Dudinka, a dopamina encharcando o sistema de um senhor que se julgava fora de perigo, o processamento gasoso dentro de uma criatura lanuda, um coágulo deslizando pelas veias de uma criança, um vírus rocando suas peças numa granja mexicana, uma espinha de peixe com o peixe em volta, o um se tornando dois e quatro e oito, a ossatura comprida da minha mão sacando de um instrumento metálico e colhendo o aleph para um saquinho de farmácia – aah. Obediente, achei a pinça avulsa em minha bolsa de mulher e imitei o que havia visto. Coletei-o. Era como uma purpurina perdida. É claro, ele trabalhava num laboratório, coitadinho. Mas acho que ele tem sentimentos. Sentimentos e vontade. Minha teoria é de que todos os alephs sejam interfaces de VALIS. VALIS seria uma ultraconsciência designada a nos lembrar de toda a sabedoria que esquecemos, mas está armazenada em nós. Aliás, no livro de Philip K. Dick, o filho dele – que ele nem sabia que estava doente – é curado a partir de uma informação “despertada” por VALIS. O aleph seria, então, uma espécie de iPod do VALIS, já que haveria interfaces maiores. Portanto, seria inteligente, teria vontade própria, mesmo fragmentado e mutilado… Essa impressão foi reforçada pela vez em que flagrei o Jorge (não o Borges, mas o laboratorista) saindo de uma dessas casas botafoguenses onde, em horas determinadas de certos dias da semana, ouvem-se cânticos. Uma casa art-déco, numa rua com nome de mulher. O homem, não sei por que artes, havia produzido um aleph mutilado. Escravizado. Tornado em máquina diagnóstica. Servindo a bons propósitos, não havia dúvida, mas… Eu vi o fluido na barriga da minha gata antes de ela morrer. Levei-a ao veterinário, mas nada foi possível fazer. Simone Campos nasceu no Rio de Janeiro em 1983. Estreou na literatura com o romance No shopping, publicado em 2000. Publicou também o romance A feia noite (2006), o romance de ficção-científica Penados y rebeldes (2006), o livro de contos Amostragem complexa (2009) e o livro-jogo Owned (2011), além de figurar em inúmeras antologias de contos. Seu romance mais recente é A vez de morrer (2014, Companhia das Letras). É mestre em literatura pela UERJ e iniciou o doutorado na mesma universidade.]]>- Cinco livros e cinco frases para lembrar de Henfil - 16.01.2017
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Muito bom seu site, gostei muito.
Gostei muito do que li aqui no seu site.Estou estudando o assunto,Mas quero agradecer por que seu texto foi muito valido. Obrigado 🙂
Gostei!